sábado, 18 de fevereiro de 2012

NOTÍCIAS FABRICADAS - crítica


Por uma arte política: os mundos visíveis de Rubens Pileggi
Manoel Silvestre Friques
      Dentre o conjunto de procedimentos poéticos utilizado por Rubens Pileggi, aqueles que talvez sejam mais pungentes dizem respeito ao modo como o artista lida com a visibilidade. Suas obras propõem, com uma certa freqüência, deslocamentos do visível, na medida em que trazem à baila elementos ignorados pela paisagem urbana – mas que pertencem, irrevogavelmente, a esta – ao mesmo tempo em que se dissolvem em meio ao caos das grandes cidades. Questionando, por exemplo, a “lógica do monumento” – no interior da qual a escultura representa, em caráter grandioso, permanente e comemorativo, um feito histórico – Pileggi trata de criar estátuas efêmeras em miniatura, instalando-os em lugares de grande circulação. Em poucos horas, tais objetos somem sem deixar rastros, em contraponto direto ao boom de memória vivenciado nos dias atuais, seja por meio do desenvolvimento tecnológico, seja por meio de um revival da idéia de monumento como memorial. Aqui, não resta dúvidas quanto à proposta desmaterializante da obra: o trabalho de Pileggi resiste à institucionalização artística ao se diluir nas ruas das metrópoles, afirmando-se como uma antiescultura, antiobjeto.
      Se, em Monumento Mínimo Precário (1998), o visível – a obra de arte, a escultura mini-monumental – é devolvida à sua condição de invisibilidade, em Notícias Fabricadas (2011), observa-se movimento inverso. Atuando criticamente a partir de reportagens jornalísticas que lidam com o “problema” dos moradores de rua, Pileggi exibe não apenas este grupo de indivíduos, mas também os recursos utilizados pela mídia para torná-los, por meio da visibilidade da notícia, mais invisíveis. A matéria-mote para a obra expunha as medidas utilizadas pela prefeitura do Rio de Janeiro para impedir a ação dos mendigos, colocando pedras embaixo dos viadutos, impossibilitando-os de dormir nestes locais. Relatava também a preocupação dos moradores “legítimos” dos bairros, por meio da contratação de detetives responsáveis por desvendar a origem e o perfil dos “invasores”. Ora, como não saber a origem dos moradores de rua?
      A leitura do artista para a notícia produziu então o trabalho que agora lemos. Às matérias iniciais, são acrescentadas duas páginas de jornal contendo reportagens produzidas pelo próprio Pileggi, três travesseiros sonoros e um relógio Romelex. Por meio das notícias que produz, o artista cria uma fenda naquilo que Barthes denomina de logosfera – uma espécie de camada de forração formada por tudo que lemos e/ou ouvimos. Neste caso, ela se refere ao discurso oficial, por meio do qual a versão jornalística se converte em retrato legítimo da realidade. A criação de mais reportagens sobre o tema, acrescentando-lhe informações, não é realizada de forma incólume, pelo contrário. As notícias de Rubens levam ao extremo as posições jornalísticas – aparentemente imparciais – a ponto de revelar-lhes seu absurdo latente. O acréscimo de matérias impõe-se como um artifício por meio do qual a reportagem do artista revela o caráter fictício – e, por que não dizer?, mentiroso – de algo que se pretende verdadeiro. A adição, portanto, abala o discurso jornalístico, interrompendo o continuum de palavras que trata de esconder, ou ao menos velar, suas verdadeiras intenções e posicionamentos. A perspectiva crítica deste trabalho não surge por meio da denúncia ou da supressão, mas da intensificação – através do acréscimo – de um discurso. É neste sentido que o trabalho de Pileggi pode ser relacionado à poética de Bertold Brecht.
      Pois, assim como a do encenador alemão, a obra aqui comentada trata de devolver a verdade histórica ao escrito. Neste caso, ela está estampada no título: notícias fabricadas. Enquanto verdade produzida, o sentido deste discurso jornalístico é único: ele atua de modo monopolizante, parcial e redutor. Isto não deve ser desconsiderado, nem neste, nem em outros casos onde a mídia, com a sua capacidade (e o seu poder) de controlar e manipular a informação, inventa verdades mentirosas – neste sentido, o tratamento dado aos mendigos resulta de uma postura padrão de um tipo de jornalista desvinculado já há algum tempo de qualquer pensamento ético, postura essa que pausteriza os insurgentes e os relega à invisibilidade (mais recentemente, pode-se mencionar o caso de Pinheirinho, em São Paulo, noticiado de modo torpe pelos veículos de comunicação).
      A verdade histórica é inserida então no espaço atemporal e asséptico da galeria de arte. Ora, nesta operação, onde o histórico se choca com o atemporal, põe-se em jogo não apenas os binômios verdade/mentira e história/natureza, mas também outro: fora/dentro. Ao dar destaque, por meio de sua obra, a assuntos rotineiramente relegados ao esquecimento – não apenas pelos jornais, mas por todo e qualquer transeunte de uma grande cidade – Pileggi impregna o interior da galeria de seu exterior, acrescentando (uma vez mais) a um espaço subtraído (afinal, este lugar isola a obra de tudo aquilo que pode interferir a sua apreensão) todo o seu entorno. O cubo branco é, com isso, contaminado – os mendigos não estão apenas soltos nas ruas, mas presentes também até nos espaços ideais das galerias de arte. Os três travesseiros atuam, com isso, de modo diametralmente inverso a propostas relacionais, como os Objetos transitórios para uso humano (2008), de Marina Abramovic – cuja genealogia, indubitavelmente, deve remontar à produção de Ligia Clark – na qual o espectador é convidado a vivenciar “momentos de paz” desencadeados por relações ritualísticas com materiais como cristais, cobre e ferro. No caso de Pileggi, elimina-se a possibilidade de uma vivência desta natureza, pois encostar a cabeça no travesseiro traz consigo a densidade sonora do exterior. O espectador, então, é alçado à condição de mendigo, vivenciando, não uma experiência íntima e atemporal, mas uma situação histórica e fabricada pela notícia do artista.
      O choque temporal e a redistribuição espacial observados na obra de Rubens Pileggi conduzem à crença de que suas produções artísticas são políticas. Tal afirmação pressupõe uma noção de arte política que, antes de representar conflitos sociais ou denunciá-los, configura-se como um sensorium no qual a experiência proposta trata de produzir um dissenso, uma fissura na logosfera instituída. Por meio de abalos, acréscimos e deslocamentos, Pileggi questiona justamente os regimes instituídos de visibilidade e de legibilidade, travando um diálogo com Jacques Rancière, quando este diz que a arte é política quando “os espaços e os tempos que ela recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das competências e das incompetências, que define (ou definem?) uma comunidade”. Sua obra é política na medida em que redistribui relações e embaralha polaridades – ela não poderia ser outra, portanto, a não ser um Romelex.

Manoel Silvestre Friques é Teórico do Teatro (UNIRIO) e Engenheiro de Produção (UFRJ). Doutorando no Programa de História Social da PUC-Rio, é Mestre em Artes Cênicas pela UNIRIO. Professor da Faculdade de Artes do SENAI-Cetiqt, foi assistente do artista plástico André Parente entre 2008 e 2010. É editor de conteúdo dos sites tempofestival.com.br e novasdramaturgias.com.br e co-fundador do grupo teatral Aquela Cia. Na abertura da exposição In-Possíveis (Parque Lage, 2012), lançou seu primeiro livro, Seis Chaves, contendo ensaios sobre seus companheiros de Programa Aprofundamento, Luciana Paiva, Tiago Rivaldo, Louise D.D., João Penoni, Bruno Belo e Danilo Ribeiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário