sexta-feira, 27 de agosto de 2010

BURACO - por Hilário Mertz




Buraco

A instalação Buraco, que faz parte da mostra coletiva Sentidos, em cartaz na galeria da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, é um trabalho que visa trazer ao espectador uma experiência de espaço através da concreção do vazio. Esse ‘vazio’ só é plenamente possível ser apreendido porque confronta formas distintas de uma temática que radicaliza a percepção real do local onde o espectador está inserido, isto é, uma galeria de arte que é um corredor fechado e, também, local de passagem entre a entrada do casarão e as antigas dependências de serviço daquela mansão histórica. Localizada aos pés do Corcovado e com vista direta para o Cristo Redentor, este, reinando onipresente, torna-se parte do próprio jardim da EAV.

Como todos sabem, o Cristo é uma das imagens pelas quais mais se reconhece o Brasil. Essa estátua, glória da cristandade católica, acaba por se naturalizar como parte da paisagem carioca, fazendo de sua presença o ícone maior da cidade do Rio de Janeiro. Seria de se perguntar, também, se a estátua é uma obra de arte, ou, ainda mais, se a estátua é, de fato, uma obra pública. Ou, até que ponto as obras públicas são, de fato, públicas? Mas isso continua merecendo um debate amplo por parte de todos nós, cidadãos, que vemos crescer bonecos de bronze e outras intervenções nos espaços públicos da cidade, como se tratassem de verdadeiras obras de arte. Em todo caso, fazer isso ‘artisticamente’ é o que a instalação de Rubens Pileggi se propõe a apontar.

A obra é constituída por três elementos distintos que tentam responder as questões acima sobre contexto, lugar e significado das imagens. Em primeiro lugar, pode-se ver uma vitrine que apresenta, como se fossem uma coleção de objetos antropológicos, dez cartões postais do Cristo comprados em bancas de jornal. Cada um desses cartões está furado em partes distintas e, da maneira como estão dispostos, os furos dos cartões podem ser vistos através de espelhos que refletem a parte detrás das imagens. Assim, toda a peça pode ser observada. Mas, qual o interesse de mostrar o outro lado do buraco? Transformar objetos banais do cotidiano em possibilidades de acontecimentos extraordinários é refazer a percepção daquilo que parecia estar ali como se tivesse nascido junto com o lugar, mas que é, na verdade, uma conformação da percepção que se adapta à rotina. Assim, o que o furo no cartão postal faz é desnaturalizar essa relação, investindo em sentido contrário à representação da imagem bidimensional, acabando com a ilusão, mostrando que, antes, ali, há uma folha de papel de determinado tamanho, espessura e que está coberta de tinta de impressão. O espectador, então, se vê diante de um enigma, pois o óbvio se torna, então, uma armadilha.

Para quem se contenta em ter descoberto a charada, a piada lhe basta. Mas, detendo-se um pouco mais verá outros elementos em cena e, assim, perceberá um par de moldes de mãos, feitos em gesso, com um pequeno tubo saindo de cada uma delas, do outro lado da vitrine, na altura de seus olhos. O que esses moldes que mostram o negativo da forma fazem ali? Eles representam a concreção do espaço vazio. Representam o construir humano, o artifício do fazer. Representam, também, a religião e a fé. Por serem de gesso, assemelham-se a ex-votos. Todos sabem que a mão furada é a mão do Cristo e, no caso, os pequenos tubos ao invés de serem eles mesmos, são concreções do buraco. Essas mãos se tornam, por força das relações entre as partes da instalação, a ponte que liga a terra e o céu.

Céu? Sim, o céu pode ser visto através de um buraco no teto. Eis a surpresa que catapulta a atenção do espectador. Ele agora está metido dentro de um buraco. O visitante agora começa a perceber que toda a leitura é uma armadilha. Que é preciso descontruir as representações e recolocá-las em colapso antes que elas, novamente, signifiquem. O céu, em questão, aparece através de uma fotomontagem adesivada no teto, como se este tivesse sido furado para dar passagem à luz que vem de fora e, junto viesse, também, a imagem do Cristo no topo do Morro do Corcovado. O trompe l'oeil engana o olho que vê, à primeira vista, um buraco no teto da galeria, fazendo o porão do casarão do Parque Lage ganhar luz e ar, vindos do lado de fora. Em se tratando da relação da cidade com sua memória, pode ser, também, um buraco daqueles que se fazem quando é preciso jogar o entulho das ruínas de um andar ao outro até o piso térreo, de onde serão levados os restos da demolição.

São três elementos breves e eles se relacionam como se fossem versos do hai-kai japonês, onde o primeiro verso ativa o segundo e os dois juntos criam o terceiro, que os contextualiza. A comparação com o hai-kai também serve como argumento para mostrar que, apesar de ter a figura onipresente do Cristo como tema, o trabalho, se tem algo de religioso, é muito mais budista do que cristão. O que se coloca, no cruzamento da leitura dos elementos, se encontra na ordem das distinções entre céu e terra, virtualidade e concreção, sagrado e profano, alto e baixo, vertical e horizontal, reflexividade e temporalidade. Enquanto prática religiosa, o budismo, além de não negar os pares opostos, ensina que só se pode experimentar a plenitude com a incorporação do vazio. Não nega Cristo, ao contrário, mostra que a imagem, antes de ser santificada, é ideológica.

O teto da galeria funciona como uma antiga catedral, criando uma relação invertida com os cartões postais. Enquanto estes negam a representação, o buraco no teto a reafirma. Mas, ambos, a reafirmam dentro do Buraco, que é, enfim, o lugar onde todos nós nos enfiamos, sejam esses buracos as instituições, as formas de relacionamentos, ou aquilo que nos prende a um dentro, mas que, até por força dessa prisão, cumpre apontar para um fora dela, fazendo o espaço se tornar vital.

Hilário Mertz é filósofo formado pela Universidade Espiritualista Internacional e crítico

Exposição EAV/Parque Lage